sexta-feira, 29 de maio de 2009
O que vi em Susan Boyle
Das duas, uma: ou aquela figura neandertalesca, de cabelos desgrenhados e olhos miúdos entre sobrancelhas cerradas e maçãs salientes, é uma pegadinha, ou o programa "Britain"s Got Talent" acaba de encontrar o elo perdido.
Das duas, nenhuma. Aquela caricatura de mulher é Susan Boyle e sua presença no palco abre um tonel de zombarias. Quando Susan revela seu sonho de ser cantora profissional, como a canadense Elaine Paige, com metade da sua idade e um terço do seu peso, a platéia debocha.
No júri, a atriz Amanda Holden, emoldurada pelo cético Piers Morgan e pelo ascético Simon Cowell, se esforça para fazer cara neutra de paisagem, mas seu belo rosto parece dizer: "Isso vai ser divertido". Pelo menos até a voz de Susan acentar os primeiros acordes de "I dreamed a dream". Aí o queixo de Amanda cai, literalmente.
A platéia vai ao delírio. Em poucos dias Susan Boyle é vista mais de cem milhões de vezes no Youtube e muito mais na mídia global. O título da obra de Victor Hugo, "Os miseráveis", que a canção evoca é emblemático.
Susan Boyle é uma miserável cantando para miseráveis. Feia, deficiente e sem jamais ter tido um namorado, ela é tudo aquilo que nenhum de nós gostaria de ser, mas somos. Quando começa a cantar, porém, até Amanda Holden quer ser Susan. Ela aplaude de pé, e o jogo de câmeras contrasta o seu corpo esguio com a silhueta de canhão que ribomba no palco.
Talvez o correto não seja dizer que "somos" miseráveis, mas, sim, que "estamos" miseráveis, do mesmo modo que hoje Susan "está" feia e Amanda "está" linda. Em cinquenta anos o corpo de Amanda, hoje sensual, também será canhão, e sua pele, agora de pêssego, se transformará num maracujá de gaveta. Os miseráveis no júri e na platéia aplaudem porque torcem por Susan e por si mesmos, igualmente carentes de amor e perfeição, ainda que sob diferentes camadas cosméticas.
Estranho ser, esse humano! Almejamos padrões de bondade, justiça e beleza que sempre estão muito acima do que podemos alcançar. De onde será que vem isso? Vivemos na terra, mas de olho nas estrelas, porque trazemos em nós um sentimento de infinitude. É como se Deus tivesse plantado a eternidade em nossos corações. Se é que não plantou.
O paradoxo, porém, é que esse mesmo humano, capaz de proezas do talento e do pensamento infinitamente superiores a qualquer outro ser vivo, também é capaz de atrocidades nunca vistas na mais medonha fera irracional. Matamos nossos filhos para comê-los no jantar, mas também criamos um número infinito de filigranas a partir das mesmas e perfeitas sete notas musicais, como Susan faz no palco.
E ao cantar, ela nos lembra de que existe no humano uma dignidade além do que aparentamos ser. Trata-se do sopro divino, algo que nenhum animal recebeu. Por isso Deus não desistiu de Sua criação e quis Se revelar em humanidade numa Pessoa perfeita, Jesus, ainda que miserável em sua tez exterior.
É por isso que torcemos por Susan Boyle, como quem torce pela Fera da Bela, pelo Corcunda de Notre Dame e pelo Frodo dos pés peludos de "O Senhor dos Anéis", vivendo sob a contínua tentação do anel.
Nós nos identificamos com heróis fracassados porque acreditamos que ainda podemos ser amados, resgatados e transformados desta miserável condição. É como se sentíssemos saudade do Paraíso.
Susan Boyle não é o elo perdido. Ela apenas revelou que o elo existe, mas não com algum símio ancestral. Sob aquela semelhança feia, miserável e transitória foi possível ver um ser criado à imagem de Deus. Quem estava no palco não era uma pessoa estranha.
Naquele palco eu vi a mim mesmo, como Deus me vê e me ama. E também vi você.
Autor: Mario Persona, palestrante, professor e consultor de estratégias de comunicação e marketing e autor de vários livros de negócios.
Nota: O que mais se falou nestes últimos dias foi sobre o fenômeno Susan Boyle; da Wikipedia extraímos os seguintes comentários sobre a sua performance no programa britânico de calouros e a repercussão mundo a fora:
A popularidade instantânea de Susan gerou uma série de comentários de por que a história se tornou tão abordada e o que isto significa, enquando outros se prestaram a lecionar sobre os valores morais aí incluídos. Por exemplo, o jornalista Collette Douglas Home do The Herald descreveu o trajeto de Susan como uma parábola moderna da tendência das pessoas emitirem julgamentos errôneos, especialmente sobre atributos físicos.
Como também, Lisa Schwarzbaum, em artigo do Entertainment Weekly, que observou a performance de Susan como representativa de uma vitória para a arte e o talento, postos em segundo plano dentro de uma cultura que se tornou obcecada pela aparência. Susan comentou sobre a reação das pessoas quando começou a cantar:
“A sociedade moderna é rápida ao julgar as pessoas. Não há muito o que fazer sobre isto, é a maneira como pensam; o seu modo de ser. Mas talvez agora eles aprendam, ou reconheçam o exemplo.” —Susan Boyle, The Washington Post.
“No seu sucesso, nós percebemos uma fênix surgindo das cinzas da rejeição, tristeza e decepção. Nós vemos a bonança após a tempestade. Nós vemos a vitória da bondade sobre o mal, a renovação, a dedicação e perseverança como redentores.”
—Nick Barron, Societrends.
Depois da apresentação, Amanda, uma dos apresentadores relatou:
“Eu estou tão chocada porque todos estavam contra você. Eu vejo que nós fomos arrogantes, e você nos deu a maior lição que precisávamos. Só gostaria de dizer que foi um privilégio escutar você aqui.” —Amanda Holden, Britain"s Got Talent.
Cameron Mackintosh, o produtor do musical “Os Miseráveis”, louvou a interpretação:
“Tanto quando os jurados e o auditório, eu fui maravilhado pelo choque emocional da apresentação de Susan em uma sublime "I Dreamed a Dream". Do ponto de vista artístico, essa foi uma das melhores versões que já escutei da música, grandiosa, enriquecedora. Espero que ela cante isso para a Rainha.”
—Cameron Mackintosh.
IASD em Foco
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