terça-feira, 17 de julho de 2007
EUA serão Roma, alerta historiador
Para o jornalista e historiador Cullen Murphy, uma erosão lenta começa a corroer o Império Americano. Embora creia que muito separe os EUA de seu predecessor cujo fim sepultou a Idade Antiga, fatores de risco os aproximam: a dependência do poder militar e a obsessão por segurança -a um custo insustentável-, a terceirização de funções do governo, a arrogância. Como estancar a queda? "Estaríamos nos ajudando se parássemos de tentar projetar poder em cada canto."
"Are We Rome?", pergunta o título do livro. É uma brincadeira com o som da pergunta que os pais mais ouvem dos filhos durante as viagens, "Are we home yet?", "já chegamos em casa?, e a pergunta que historiadores, analistas e pensadores norte-americanos se fazem cada vez mais: "Nós já somos Roma?".
"Nós", no caso, é o Império Norte-Americano. Responder a essa questão e traçar paralelos entre as duas épocas são o que propõe Cullen Murphy, 55, jornalista e especialista em história medieval, no livro que acaba de lançar, cujo subtítulo é "A Queda de um Império e o Destino dos EUA". "Não, ainda não" é o que ele responde à Folha, numa troca de e-mails.
Ainda assim, acredita, há muitos e perigosos paralelos entre o país comandado por George W. Bush hoje e o império que terminou em 476, ao ver seu exército derrotado pelos soldados de Odoacro, um "bárbaro" que era cristão, conhecia os meandros de Roma e até meses antes servia no mesmo regimento que agora caía.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Para usar o duplo sentido do título de seu livro, nós já estamos em Roma?
Não, ainda não. Há evidentemente muitas diferenças entre os EUA e o antigo Império Romano, e algumas dessas diferenças podem trazer em si sinais do futuro. Diferentemente de Roma, os EUA são um país de classe média, uma democracia e uma sociedade marcadamente igualitária. Ainda assim, há muitos e perigosos paralelos com a Roma antiga, e eles deveriam preocupar mais os americanos.
Por exemplo, a maneira com que os EUA dependem crescentemente do poder militar para atingir seus objetivos, mesmo com nossas Forças Armadas já no limite de sua capacidade. Ou a terceirização de funções governamentais para empresas privadas, o que enfraquece a capacidade do governo de agir em benefício de todos os seus cidadãos -e aumenta a habilidade dos interesses privados em agir em benefício de poucos. Por fim, a mentalidade que vê os EUA como o centro do sistema solar, com todos os outros países orbitando em torno de nós.
O que mais?
Há pessoas na direita que vêem os EUA como ainda na fase ascendente e ainda no processo de expansão de seu poder no mundo. Há, obviamente, muitos outros, não só na esquerda, que se preocupam com o fato de que a "Pax Americana", como a "Pax Romana" de muitos séculos atrás, ser uma ilusão. Ilusão essa que vai levar os EUA a trilhar um caminho perigoso e fútil, na minha visão.
O processo de "declínio e queda" não vai ser súbito, mas uma erosão lenta, como foi para Roma. O que nós chamamos de "queda de Roma" não foi uma catástrofe ocorrida da noite para o dia, aquela imagem popular dos bárbaros empurrando as portas da cidade. Ao contrário, levou séculos, ocorrendo mais rapidamente em alguns lugares que em outros.
Você pode estar vivendo bem no meio dessa "queda" e não se dar conta. Para alguns, a queda se parece muito com o que vemos agora, aliás: novos povos adquirindo nova autoridade e poder econômico, alguns grupos demográficos novos se mudando para cidades, outros grupos mais antigos se tornando gradualmente marginalizados...
O sr. dedica boa parte do livro à questão da segurança, acha que o preço de manter um império é a constante vigilância. Ironicamente, isso não o levará à ruína?
O custo da segurança -ou, para ser mais preciso, o custo do que achamos ser segurança- é insustentável a longo prazo. Foi insustentável para Roma. É o mesmo dilema: seus Exércitos são muito pequenos para as metas que eles têm de (ou desejam) cumprir, mas ao mesmo tempo muito grandes para serem mantidos por muito tempo. São custosos em termos humanos e financeiros.
Não sei se esse problema tem solução, além da mais óbvia: parar de tentar projetar nosso poder em cada canto do mundo. Nós só estaríamos nos ajudando se fizéssemos isso. Se adotássemos uma política de energia inteligente, por exemplo, que levasse em conta nosso imenso poder tecnológico, poderíamos abrir mão de manter a presença maciça atual no Oriente Médio.
O número de mercenários no Iraque já quase se equivale ao de soldados. O Império Romano fazia o mesmo...
Nesse momento, há 150 mil soldados americanos no Iraque, e cerca de 100 mil mercenários. O problema de manter um Exército muito numeroso em ação é que o preço político se torna muito alto. É muito mais fácil fingir que o número de tropas oficiais está estabilizado -ou mesmo reduzido- e ao mesmo tempo contratar profissionais do setor privado para fazer o serviço. A prática não é nova, mas a proporção atual é inédita.
E não afeta apenas os militares. Há hoje 2 milhões de funcionários públicos no governo federal. Estima-se que haja mais 12 milhões -você leu certo- prestando serviços, em contratos privados, realizando todo tipo de trabalho público, mas empregados por companhias privadas. Pode ser que sejam em tese mais eficientes, menos burocráticos. Mas, com o tempo, a erosão do poder do governo é muito significativa. E, quando houver uma nova crise, o governo pode descobrir tarde demais que não tem autoridade direta para fazer o que deve ser feito. Isso aconteceu em Roma.
A comparação entre Washington e Roma é recorrente. Por que o sr. acha que historiadores a acham tão atraente?
Não vamos nem falar do fato de que Washington e Roma até se parecem fisicamente, com todo aquele mármore se erguendo do pântano. O fato é que Roma era o Estado mais rico, sofisticado e poderoso da época, o que os EUA também são hoje. Como Roma, também têm uma ideologia de superioridade -nossa nota de dólar chega mesmo a usar as palavras de Virgílio para proclamar "Novus Ordo Seclorum", uma nova ordem para os tempos.
Após a Segunda Guerra (1939-45), quando aos EUA foi confiado o papel de líder mundial num grau nunca ocorrido antes (um papel que o país desempenhou de maneira satisfatória por várias décadas, na minha opinião), as pessoas começaram a dizer "Pax Americana", em referência à "Pax Romana". Mas outra razão que leva as pessoas a fazer a comparação entre os dois impérios tem a ver com o que não são as melhores qualidades de ambos: a arrogância, o orgulho excessivo, o fato de sermos voltados para nós mesmos...
De onde a comparação entre o presidente George W. Bush e o imperador Diocleciano?
Tenho pensado nos EUA sob a ótica de Diocleciano já há algum tempo, por conta do grande investimento dos últimos anos -a começar de Ronald Reagan, na verdade- em segurança nacional e do declínio relativo de investimento em programas domésticos. A comparação não é absolutamente exata por várias razões. Ainda assim, parece claro para mim que os EUA estão se tornando o Estado que se preocupa em primeiro lugar e principalmente com a segurança nacional em termos militares -o que Diocleciano (284-305) também fez, ao se tornar imperador depois de um período de caos e declínio.
Mas o trecho ao qual você se refere, em que comparo os preparativos para uma viagem ao exterior de Bush aos do imperador, me ocorreu quando meu avião aterrissou na Irlanda e eu vi ambos os Air Force One na pista, cercados por militares, cercas de arame farpado, vigiados com caças com mísseis. Um imperador romano se deslocava pelo mundo com um pesado aparato de segurança -como Bush, levava com ele um governo inteiro em miniatura...
Fonte: Folha de São Paulo, 16 de julho de 2007
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